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Parece que aquele pai arcaico e guerreiro, à semelhança do Deus judaico, senhor dos exércitos e das famílias, cedeu o seu trono em troca de uma relação de cumplicidade com os filhos, para desempenhar funções jamais imaginadas em eras passadas. O pai de hoje já não consegue ser mais aquele que toma posse do filho para reger o seu destino.
Um exemplo de como eram as relações entre filhos e
pais antiquados estão presentes na “Carta ao Pai”, que o escritor checo,
Kafka (1883 – 1924), redigiu e nunca teve coragem de enviar ao
seu destinatário. Na carta do autor de “Metamorfose”, que só veio a
público após a morte de seu pai, encontramos essa emblemática declaração:
“Da tua poltrona, tu regias o mundo.
Tua opinião era a certa,
qualquer outra era disparatada,
extravagante, anormal”.
Hoje, as descrições da antropologia definem o pai da
pós-modernidade como o “Pai Mutilado” que, ao permitir uma moderna
desordem no seio da família, abalou os velhos costumes centrados no poder
coercitivo patriarcal.
Esse pai pós-moderno, já não vê o filho como um objeto
inteiramente submisso à sua vontade. Por outro lado, o filho moderno também
deixou de ser uma coisa para se tornar um sujeito integral.
O facto é que o que antigamente era totalmente
imprevisível, hoje, tornou-se muito comum: pai e filhos, no fim-de-semana,
passam horas na cozinha da casa, a conversar
após o almoço, trocam impressões de forma divertida sobre assuntos diversos
do quotidiano familiar. Foi-se o temor do filho ser repreendido por discordar
do pai. Aliás, não são poucos os filhos, que hoje, têm sido verdadeiros
conselheiros dos pais, antes deles tomarem qualquer decisão importante. A
seriedade da família antiga que, exigia uma postura sacra na hora solene das
refeições, deu lugar aos incontroláveis momentos de humor, onde a descontração
é o que conta, ou seja, um pai espontâneo, rindo dele mesmo, das histórias
engraçadas contadas pelos filhos sobre as hilariantes peripécias do seu dia a
dia.
A relação “Senhor-Servo” (patriarcal) deu lugar
a um vínculo premiado de intensa cumplicidade, onde o pai é mais amigo do filho
do que mentor, em que pese a sua condição de provedor. Os laços afetivos são
tão estreitos, com visões de mundo tão alinhadas que os próprios pais chegam a
aceitar de bom grado que os filhos posterguem ao máximo a sua saída definitiva
da casa paterna.
Pais a ser contestados, desafiados e a receber
conselhos dos filhos?! Quem, no tempo dos nossos avós, poderia pensar que isso fosse
um dia acontecer?!
Não se sabe bem como será a família do futuro após o
desmoronamento dos muros rígidos que separavam o terreno da autoridade paterna
do que era a área do filho.
Quem diria que o pai-patrão, um dia, viria a
ser um exímio trocador de fraldas, facto que por si só, é um indicativo de que
os tempos são outros, tempos de servir aos filhos sem pensar em interesses
pecuniários, como era comum no passado dos pais que diziam com fervor: “Estou
a investir nos filhos, para no futuro ser bem recompensado por eles”.
O terrível julgamento que proibia os filhos de
superarem os pais, presente na evocação da famosa frase do poeta e filósofo
romano, Horácio − “Valemos menos que nossos pais, e nossos
filhos valerão menos que nós” − hoje, isto já não tem razão de ser.
Parece mesmo que estamos a viver uma nova ordem a que
os conservadores chamam de “desordem familiar”, onde o pai, à
semelhança do Deus Patriarcal Judaico cansado de guerras, decidiu, de uma vez
por todas, desnudar-se de todo o poder para se reinvestir da
horizontalidade do amor fraternal, em que todos do lar comungam de um
mesmo sentimento.